Venho de uma família em que a presença feminina sempre foi muito forte: mulheres que se tornaram referências em suas profissões e dentro de casa, não que os homens da nossa família também não tiveram/tenham suas significativas contribuições, mas a força feminina é mesmo dominante em nosso lar. Sou filha de uma mãe que engravidou aos 18 anos, antes de casar, ainda como estudante de Direito. Uma mãe que nem mesmo com uma gravidez que não estava nos planos abriu mão dos estudos. Tenho lembranças vivas de uma mulher que se desdobrava entre aulas, trabalhos e os filhos - dois anos depois de mim, veio meu irmão e 23 depois, o mais novo da casa.
Lembro dessa figura muito determinada que colaborou com a minha formação, com as minhas ideias sobre o mundo e as minhas expectativas. Essa mesma mãe que sempre insistiu: "busque o seu espaço como mulher!". Tenho muita sorte de ter tão perto um exemplo desses. Sei, também, que a nossa história faz parte de uma minoria. Lamento que muitas mães jovens desistam pelo caminho.
Quando pisei pela primeira vez em um campo de futebol como repórter esportiva, pensei no meu pai, pela paixão que me foi transmitida desde muito cedo pelo esporte; mas pensei, principalmente, na minha mãe e no espaço que eu estava conquistando como mulher. Foi muito natural que, com o passar do tempo, alcançando as metas profissionais e ganhando uma maior visibilidade que a profissão proporciona, eu fosse, também, entendendo esse meu papel, essa função de repórter mulher.
Há algumas semanas, alguém disse que eu era a repórter feminista, a chata que só falava desse assunto, que virava manchete a cada ataque na Internet ou na rua (como foi na Eurocopa em 2016 e em alguns estádios do Brasil). Fiquei chateada num primeiro momento. Ninguém gosta de ser considerada "chata", mas é verdade, também, que existe uma distorção do sentido aplicado ao feminismo, como se ser feminista fosse algo ruim ou pedante. É reflexo dessa era de polarização do mundo, em que se perderam os reais sentidos dos termos.
Renata de Medeiros, repórter da Rádio Gaúcha, é outra “chata”, outra repórter do 'mimimi', mais uma feminista querendo destaque, certo?! Percebam, aqui, minha ironia: ela foi chamada de puta e agredida nesse final de semana, enquanto cobria o clássico Grenal. Ofensa e agressão gratuitas que, felizmente, foram registradas por um colega para que não passassem impunes (as imagens seguem repercutindo nas redes sociais). Posteriormente, o torcedor foi encaminhado para o Juizado Especial Criminal, retirado do estádio. A jornalista registrou queixa pelo crime, e o Sport Clube Internacional divulgou uma nota de repúdio ao fato; fez o alerta, também, ao pedir que outras vítimas sempre denunciem fatos assim.
É por esse e outros acontecimentos que eu tenho certeza de que EU QUERO SER A REPÓRTER FEMINISTA, SIM! Quero ser a repórter feminista, porque nós precisamos. Quero, porque não estou sozinha, temos, além da Renata, as repórteres Gabriela Moreira, a Lívia Laranjeira, a Ana Thaís Matos, a Mayra Siqueira e outras várias que estão por aí, fazendo um trabalho sensacional, tentando a igualdade, refletindo sobre o nosso papel. Citei essas porque são as que sempre são agredidas/lembradas pelos "valentões dos teclados", as que já foram mencionadas em comentários que me envolviam também. Nós precisamos ser incansáveis!
A partir do momento em que você ganha "repercussão" pelas suas ideias e pelas causas que você defende, muitos passam a chamar você de referência. Essa palavra é um peso e tanto! Eu vejo assim: não é sobre a ideia de ser exemplar, de ser infalível e de estar sempre certa nos conteúdos expostos em nossa profissão. Também erramos; mas é sobre ser um exemplo positivo de que muito carecemos. Um incentivo, um estímulo, uma mensagem de que é possível, de que é viável que outras possam percorrer caminhos similares aos nossos.
Engraçado que, mesmo quando você é lembrada como aquela mulher que está trabalhando no esporte, mesmo quando você é citada por uma nova geração de jornalistas que está chegando, mesmo assim, os testes continuam. Somos testadas todos os dias e, às vezes, nós mesmas nos testamos, confesso. Não é novidade por aqui admitir que há dias em que a vontade é desistir de falar tanto sobre o assunto, de se expor, de “brigar”.
Os números dimensionam a responsabilidade de insistirmos na temática: a violência contra a mulher, seja ela qual for, segue muito presente. A cada onze minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. 40% das mulheres acima de 16 anos já sofreram algum tipo de assédio. Mulheres são assediadas/ofendidas na rua, em ambiente profissional, nas redes sociais, por onde passam. Vou, então, ficar preocupada em ser chamada de feminista? Incomodada por falarem por aí que tudo é 'mimimi'? Não, não vou.
Além disso, a desigualdade de gênero é real. Somos parte dessa sociedade que ainda está em transição sobre as mulheres terem e gozarem dos mesmos direitos dos homens nos mais variados exemplos. Sobre recebermos as mesmas oportunidades. No esporte, você sabia que só foi em 2012, em Londres, que tivemos a participação de mulheres em todas as modalidades olímpicas? Foram necessárias mais de três décadas de Jogos Olímpicos para que as mulheres pudessem finalmente participar oficialmente da competição (em 1936) e só então na 30ª edição conseguimos preencher as vagas em todas as disputas.
Eu tinha sete anos quando Sandra Pires e Jacqueline Silva foram as primeiras mulheres a conquistar uma medalha de ouro para o Brasil no maior evento esportivo do mundo. Nossa, que dia! Eu era novinha, mas como essas coisas marcam... eu lembro da comemoração da minha mãe na sala! A dupla dourada fez história em Atlanta-1996 e serviu como um referencial para meus próximos anos. Eu cheguei a sonhar com uma Olimpíada nas inúmeras modalidades que pratiquei.
Maurren Maggi, campeã mundial no salto em distância em Pequim-2008
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Em Pequim-2008, a judoca Ketleyn Quadros (bronze) e Mauren Maggi, campeã olímpica do Brasil no salto em distância, entraram para a história ao conquistarem as primeiras medalhas individuais do país em Olimpíada. Quantas edições, quanto tempo esperando por isso! Aconteceu e servem de exemplo até hoje para aquelas que se imaginam no pódio.
Antecedendo as medalhas em si, as participações marcantes também devem ser lembradas. Sou fascinada pela história da Maria Lenk na natação. Antes da oficialização das atletas mulheres nos Jogos, em 1932, ela nadou a Olimpíada com apenas 17 anos. Vibro com a trajetória da Maria Esther Bueno no tênis, incluída no Hall da Fama internacional da modalidade em 1978, a primeira e única brasileira a receber essa honraria.
Admiro a coragem da carioca Aída dos Santos como a primeira mulher brasileira a disputar uma final olímpica, em Tóquio-1964, sendo ela a única mulher da delegação do Brasil na ocasião. Algumas das muitas lindas histórias vividas por esportistas brasileiras num passado não muito distante, quantas outras estão por vir?
Acredito que a construção desse tempo sem diferenciação de gênero passa também pelos rótulos que colocamos nas pessoas e pelos que são colocados em nós mesmos. Você não precisa ser ativista para ser feminista; feminismo não é a dominação das mulheres sobre os homens ou o ódio, feminismo é a ideia de buscar a liberdade e a igualdade, é um ideal legítimo e mais do que necessário. Se, pra isso, preciso ser a "chata", que assim seja. Meu “mimimi” não vai ter fim. Nem o meu, nem o nosso.
O dia em que eu voltei a torcer pela Seleção Brasileira
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