Como Senna é ídolo mesmo para quem nunca viu uma corrida dele ao vivo?
Eram outros tempos no Brasil. Os avanços sociais que começaram a ser consolidados em julho daquele ano com o Plano Real, ainda não tinham acontecido. O país era terra fértil para a criação de um herói, de um mito. Ainda mais quando, ao contrário dos Estados Unidos com os "Pais Fundadores", não há heróis nacionais no Brasil. Tiradentes é um herói fabricado, o elo mais fraco da Inconfidência que foi aproveitado quando da Proclamação da República – mas que não causa comoção. Tampouco Dom Pedro I, que nada mais foi do que a continuidade do Reino Unido a Portugal, quase como um quê de "pai, vou morar fora de casa" no 7 de setembro.
É nesse solo de desigualdades e de carência de ídolos que Ayrton Senna nasceu – tanto o homem quanto o mito. O que causa comoção até hoje, 25 anos de sua morte, era a parte do "Brasil que deu certo".
Algumas pessoas guardam memórias a partir dos 4 anos de idade. Outras, 3 anos. Acredito que esteja incluído no segundo caso. Sou nascido em 1991 e, como muitos no dia de hoje, reverencio um mito que, em realidade, eu nunca vi. Mas me lembro quando partiu.
O clima em casa não era dos melhores e era difícil entrar na cabeça de uma criança de 3 anos de idade que as pessoas estavam tristes com a perda de uma pessoa que parecia ser da família mas que, em realidade, não era.
É difícil, 25 anos após sua morte, escrever algo que ainda não foi escrito sobre Ayrton Senna. Até por conta disso, pensei: e se eu escrever como um dos poucos jornalistas que, hoje, sequer sabia escrever na época que ele corria?
É uma sensação estranha saber que, de certa forma, tenho como herói alguém que eu nunca vi e, embora estivesse vivo nos anos finais de sua vida, não guardo nenhuma lembrança de vitórias e glórias. Eu não vi nenhuma corrida dele ao vivo. Como tantos outros millennials, os nascidos do final da década de 1980 até 1995, eu só tive contato com o mito. Não com o humano.
O que faz de sua imagem algo tão celebrado, impactado e lembrado até hoje? Não há um aniversário "redondo" – 10, 15, 20, 25 – que não me pegue escrevendo sobre ele. Mesmo que sequer essa seja minha área no jornalismo esportivo.
A força do mito criado em torno de sua carreira, valores e vida é tão forte que, indiretamente, ele influencia pessoas que nunca viram uma volta ao vivo na Toleman, Lotus, McLaren ou Williams.
Na efeméride de 10 anos de sua morte que acabou dando uma faísca para que eu escrevesse sobre esporte. Ainda tenho os textos guardados, mal escritos como se espera de um aluno da 7ª série, mas que talvez foram o ponto de partida para que eu pegasse gosto por escrever. Hoje, 15 anos depois, ainda o faço – mas como profissão e como ganha-pão. No ano seguinte, 2005, avacalhei tudo o que podia em termos de não estudar para provas de matemática.
Passar de ano ou não estaria nas mãos do "Conselho de Classe". Enquanto eles decidiam e eu esperava o telefone tocar para me avisar da decisão, assistia ao Grande Prêmio do Japão de 1988 – corrida na qual Ayrton tem problemas na largada e passa um por um até consagrar-se campeão do mundo pela primeira vez. De certa forma, sua tranquilidade em cada curva de Suzuka me tranquilizou.
Na efeméride de 20 anos, em maio de 2014, minha mãe me deixou na porta da ESPN para aquele que seria meu teste como comentarista na NFL. Estava absurdamente nervoso, como era de se esperar. Aí, pedi um conselho para minha mãe – para que eu não ficasse assim, dado que se gaguejasse no microfone, um abraço. Ela disse para que eu mentalizasse alguém que eu admirava e que "mandava bem" em situações como essas.
Na hora, me lembrei da postura de Ayrton no primeiro teste em um F1, ainda em 1983 – o teste é mostrado no documentário "Senna", de Asif Kapadia. Ayrton menciona o teste como um presente de Deus, pelo qual ele estava esperando há tempo. A lembrança dessa imagem e sua confiança – bem como o excelente desempenho que teve naquele dia – me tranquilizaram o suficiente e, bem, aqui estou.
A figura do mito é justamente essa, desde os tempos de Grécia Antiga. Por meio de um personagem, valores são carregados através de gerações – mesmo que essas gerações sequer tenham tido contato direto com os personagens ou a Era de quando os deuses em questão viveram. É inegável que Senna não era perfeito.
Seja como piloto, vide alguns erros como em Mônaco em 1988, batendo sozinho, e Itália em 1988 (única não-vitória do MP4/4 naquele ano) ou no Brasil em 1990, ambas situações nas quais ele bate em um retardatário e perdeu a prova. A vingança em Prost em 1990, após o tapetão de Jean-Marie Balestre no ano anterior, também não é das moralmente mais louváveis atitudes de um piloto.
Mas todo o resto é composto de valores que atravessaram gerações. Determinação, fé, vítória, sucesso, paixão pelo ofício, são tantas que poderíamos ficar linhas e mais linhas lembrando-as. A compaixão, como demonstrada ao ajudar Erik Comas após batida na Eau Rouge é outro bom exemplo.
Do primeiro teste em 1983 na Williams até a última curva na mesma equipe, os mesmos valores estavam lá. Senna carregava consigo no cockpit do instável FW16 uma bandeira da Áustria, a qual usaria para homenagear Roland Ratzenberger, morto em Ímola no dia anterior.
Do início ao fim de sua trajetória, fica claro: a Tamburello pode ter tirado a vida de Ayrton, mas a verdade é que seu nome naquele momento virou sinônimo eterno com os valores que ele carregava para si. Lembraremos dele – e dos valores – hoje e em cada um dos próximos 1º de maio que vierem.
Como Senna é ídolo mesmo para quem nunca viu uma corrida dele ao vivo?
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